
O uso indevido das escrituras
Um pregador que pregou contra o parto cesariana sem dor, com base em Gênesis 3.16 ("com dor darás à luz filhos"). Uma senhora da sua igreja contra-argumentou, lembrando que ele tinha ar condicionado no gabinete e a Bíblia diz "No suor do teu rosto comerás o teu pão". Outro pregou contra a prática de esportes, baseando-se em I Timóteo 4.8: "o exercício corporal para pouco aproveita". Um outro pregou em II Samuel 11.2 ("E viu do terraço a uma mulher que se estava lavando"). Falou contra a televisão. Nela, vemos o que não devemos ver. Veio um outro e pregou sobre "e todo olho o verá" (Apocalipse 1.7) e mostrou o valor da televisão via satélite. E aí, compro televisão ou não? Essas questiúnculas ridicularizam a Bíblia. Seu uso deve ser coerente e obedecer a certos parâmetros. A Bíblia deve ser respeitada e nunca usada para autorizar esquisitices.
As questões do parágrafo acima podem até ser vistas com certa dose de humor, mas o que dizer de pregadores que usam a Bíblia para enviar recados aos discordantes, que se valem do sermão para fortalecer sua posição ("sou o ungido do Senhor, quem estende a mão contra mim morre") e para a obtenção de vantagens pessoais? E o que dizer de exegeses muito mais discutíveis, algumas até mesmo falsas? Hagin, em seu livro “O Extraordinário Crescimento da Fé”, tenta provar uma tese bem discutível, de que fé é fazer as coisas acontecerem. Usa o texto de Hebreus 11.1 ("Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se vêem" - esta é a versão empregada em seu livro). Não tendo como provar seu argumento, que segue na linha das seitas metafísicas de Boston, de que a palavra humana faz as coisas acontecerem, emite a seguinte observação: "Ainda outra tradução diz: 'A fé é certidão da garantia, a coisa em que esperamos até ao fim acaba sendo nossa'". Esta declaração confirma a posição de Hagin, mas não é bem isto que o texto grego quer dizer, aliás bem visível nas traduções. Mas a palavra de Hagin me suscitou uma questão. Anotei ao lado, no livro: "Que tradução é esta?". Se ela realmente existe, por que não a identifica?
Em outras ocasiões, vemos com abundância o uso de versículos fora do contexto, de passagens sem conexão com o todo da Bíblia, no que chamamos de "leitura fragmentária", e a ignorância do contexto cultural. Pode-se usar a Bíblia e ainda assim estar errado. Citar a Bíblia não é garantia de se estar certo. Quando questionei um mórmon sobre poligamia, ele respondeu biblicamente, com os exemplos de Abraão, Isaque, Jacó, Davi e outros. Certa vez, em uma igreja que fui chamado para pregar, uma senhora me interpelou, discordando de posição que eu expunha. Quando fiz a exegese do versículo (e fiz de maneira correta), ela respondeu que não aceitava o que eu estava fazendo. Eu estava torcendo a Bíblia. Ela não queria saber de grego e hebraico nem de voltinhas hermenêuticas para justificar posição. Ela era literalista. O que estava escrito devia ser lido como estava e obedecido como estava. Então eu lhe disse que se sentasse, ficasse calada, nada dissesse, e deixasse para perguntar em casa (não na igreja) e ao marido (não a mim). Porque está escrito na Bíblia: "As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja". (I Coríntios 14.34-35). A interpretação bíblica sem análise do contexto cultural e exegético, como ela queria, me autorizava a agir assim. Cuidado, portanto, com versículos sem conexão com o todo e sem o uso de regras hermenêuticas, para provar posições. Temos um princípio hermenêutico chamado "revelação progressiva". Isto significa que Deus se revelou progressivamente aos homens. Não significa sair do erro para a verdade, mas do obscuro para o claro. Se a revelação é progressiva, isto é, caminha para frente, deve haver um ponto final. E há. É o clímax. Lemos em Hebreus 1.1-2: "Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo". A palavra final de Deus foi dada por Jesus Cristo. Ele é o ponto final, a chave hermenêutica para se entender toda a Bíblia.
Isto nos faz entender claramente que o Novo Testamento, o ensino sobre Jesus, é a palavra final. O Novo interpreta o Antigo. Lemos em Lucas 16.16: "A lei e os profetas duraram até João; desde então é anunciado o reino de Deus, e todo o homem emprega força para entrar nele". O tempo antigo passou. Quando Pedro, na transfiguração, equiparou Moisés e Elias a Jesus, colocando-os como dignos de atenção, Deus interveio. Retirou Moisés e Elias de cena, e declarou: "Este é o meu amado Filho, em quem me comprazo; escutai-o" (Mateus 17.5). A Igreja não ouve a Moisés e a Elias, e sim a Jesus. Quando pregamos no Antigo Testamento devemos ter isto em mente: que aspecto de Jesus este texto mostrará? Pois a pregação da Igreja deve ter Jesus como tônica. Neste sentido, a interpretação bíblica que faça Jesus desaparecer ou ficar em segundo plano é equivocado.
O uso correto da Bíblia é este: o Novo Testamento é a revelação final de Deus, sendo Jesus "o cânon dentro do cânon", como Lutero gostava de dizer. Isto é aceito pela nossa Declaração Doutrinária: "Ela (a Bíblia) deve ser interpretada sempre à luz da pessoa e dos ensinos de Jesus".
"Isto é óbvio!", dirá alguém. Mas nos chama a atenção para dois pontos. O primeiro é que devemos estar atentos à tentativa de rejudaizar a teologia cristã, como temos visto. O segundo é que se Cristo é o cânon dentro do cânon e a palavra final de Jesus, temos que ser muito reticentes quanto às revelações que surgem amiúde no cenário evangélico. Segundo o movimento neopentecostal, vivemos na "era do Espírito". Um exemplo bem claro disto vemos na logomarca da Universal do Reino de Deus. Não é mais uma cruz, tipificando o ministério de Jesus. Nem uma Bíblia, tipificando a revelação total de Deus. É uma pomba, tipificando o Espírito. Neste sentido, a revelação, obra do Espírito, continua. A Bíblia é um depósito de experiências religiosas que pode ser interpretada como se deseja, principalmente pelas novas revelações, que a ultrapassam.
É preciso considerar que há um equívoco entre dois conceitos: livre exame das Escrituras e livre interpretação das Escrituras. O livro exame das Escrituras é um direito pela qual a Reforma se bateu e que nós sustentamos. Todos têm o direito de examinar as Escrituras, de estudá-la. Mas ninguém pode alegar-se o direito de interpretá-la como quiser. Ao examinarmos a Bíblia, descobrimos que Jesus vai voltar. Isto é livre exame. Todos podem ler a Bíblia, e ler nela sobre a segunda vinda de Jesus. Na obra citada de Paulo Romeiro, ele transcreve um sermão de Valnice Coelho, em que ela marca a volta de Jesus para 2007. Ela tomou a palavra de Jesus "não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam", aplicou este frase à geração que viu Israel retomar Jerusalém (1967), afirmou que uma geração dura 40 anos, e somou 1967 mais 40 e chegou a 2007. E disse, textualmente: "Deus me trouxe isso no espírito agora em Israel quando eu estava às margens do Jordão". Agora, ela saiu do livre exame para a livre interpretação. Qual a base para se dizer que o versículo citado se aplica à geração que viu Jerusalém voltar às mãos dos judeus? Qual a base para se dizer que uma geração dura 40 anos? E o que fazer desta declaração de Jesus: "Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai" (Marcos 13.32). Nem Jesus sabe, mas uma pessoa, interpretando a Bíblia como quer, ultrapassa Jesus. A livre interpretação é uma postura arrogante. Nunca, jamais, em tempo algum, alguém viu na Bíblia o que aquela pessoa vê, agora. Ela se coloca como fonte autorizada e continuada da revelação divina. Despreza toda a herança teológica de 2.000 anos de cristianismo. Ela ultrapassa a própria Bíblia.
Uma questão mais: o movimento neopentecostal tem confundido a psiquê, a interioridade humana, com o ruah, o Espírito do Senhor. Assim, o que a pessoa sente passa a ser verdade. Como se ouve a frase: "Eu senti em meu coração!". Isto não quer dizer nada. Quando eu tinha 12 anos senti no meu coração que deveria me casar com a Simoni(rsrsrsrs). Ela nem sabe que eu existo. E casei melhor do que se tivesse casado com ela. Os próprios crentes tradicionais têm confundido seu íntimo com a voz de Deus. Devemos nos lembrar de Jeremias 17.9: "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?".
Essa atitude é perigosa. Ela internaliza a verdade, coloca a verdade dentro de nós, ao invés de colocá-la como externa a nós. Neopentecostais se valem deste recurso, e assim confundem sua voz interna com a voz do Espírito. Não estou divagando. Estou chamando a atenção para um perigo: tirar a fonte de autoridade das Escrituras e colocar na pessoa. Meditem na palavra de Deus (bíblia).

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